quinta-feira, 8 de março de 2018

Os indígenas exterminaram as preguiças gigantes?


Noutro dia, eu estava vendo um daqueles programas de guias politicamente incorretos da história no canal History Channel Brasil. Naquele episódio decidiram desconstruir todas as narrativas positivas em torno dos povos indígenas. Disseram que os índios eram desde bêbados contumazes até que trocariam a vida ao ar livre por um shopping center se tivessem a oportunidade.. Duas afirmativas que me chamaram mais a atenção foram as de que os índios teriam sido responsáveis pela extinção de diversos animais de grande porte e outra de que destruíram boa parte das florestas usando a coivara, que era um método de plantação através do uso de queimadas para limpar o terreno.

Vários "especialistas não-especialistas" foram ouvidos, durante o programa, com o intuito de legitimar a narrativa que desejavam transmitir ao telespectador. Digo que eram "especialistas não-especialistas" pelo fato de não ter identificado nenhum arqueólogo, historiador ou antropólogo participando das entrevistas usadas para emprestar "autoridade" à narrativa. Nos créditos só apareciam jornalistas, escritores e um doutor em ecologia ! Acredito que a presença de antropólogos, historiadores e arqueólogos era imprescindível para a análise de sociedades indígenas no período pré-colonial.

Muitos dos argumentos demonstravam uma inconsistência que não combina com algo produzido pelo meio acadêmico.

Dizer, por exemplo, que os paleoíndios não possuíam o conceito de ecologia e por isso não preservavam o meio ambiente parece surreal. Sequer os homens brancos que colonizaram as Américas já tinham elaborado tal conceito, que só foi criado no século XIX. Ocorre que determinados conceitos somente são criados a partir de uma demanda. Os índios não necessitavam discutir "consciência ecológica". Viviam num sistema bem preservado, onde os rios possuíam vida, os alimentos não estavam impregnados de agrotóxicos, o ar era puro, o mar não estava lotado de material plástico e, principalmente, não havia indústrias gerando alta quantidade de poluentes.

A afirmação que se o índio conhecesse o shopping center não iria mais desejar ficar ao ar livre parece mais infantil do que algumas ideias da galera do ensino fundamental. O shopping sequer é unanimidade na sociedade atual. Ele surge para atender um população induzida a consumir cada vez mais e, por outro lado, com medo da insegurança das ruas. Há algumas décadas atrás, as pessoas mais idosas tinham resistência ao shopping. Embora já participassem de uma sociedade de forte consumo, preferiam o passeio público (o calçadão) para ver "as modas" nas vitrines. Os grandes centros comerciais fechados foram ganhando espaço por conta do medo que a escalada da violência gerou. Sem contar que há um grande número de pessoas que vivem nas grandes cidades e nunca sentiram uma relação de pertencimento com o ambiente do shopping. São os excluídos da sociedade de consumo. Além do que, ainda há aqueles que em cidades litorâneas, como Rio ou Fortaleza, não trocam uma dia na praia pelo shopping nos dias de sol. Quanto mais dizer que o índio, com sua cultura preservada, iria trocar um passeio para pescar num rio pelo ambiente do centro comercial.

Voltando ao tema principal, é verdade que nas américas existiu uma megafauna (animais de grande porte) que conviveu com os seres humanos no período glacial e que depois foi extinta. Dentre eles podemos citar a preguiça gigante, o tigre-de-dente-de-sabre, o tatu gigante, o mastodonte, a anta gigante, entre outros. Porém, não dá para fazer essa afirmação determinista que os índios foram os responsáveis pela sua extinção por conta da caça predatória. Esta é apenas uma das teorias a respeito do ocorrido. E, provavelmente, a extinção se deu pela concorrência de múltiplos fatores.

A tese que a caça empreendida pelos índios foi a responsável por essa grande extinção de espécies se apoia em alguns achados fósseis de esqueletos desses animais da megafauna, principalmente preguiças gigantes, em sítios onde homens pré-históricos habitaram e faziam suas refeições. Vários destes esqueletos apresentavam lesões interpretadas como resultantes da ação perfurante de flechas e lanças. Porém, se pensamos que seria fácil a caçada de uma preguiça gigante, devemos lembrar que várias outras espécies, de dificílimo enfrentamento para a tecnologia da época, como o caso dos tigres-de-dente-de-sabre e mastodontes, também se extinguiram no mesmo período.

Ocorre que a estrutura física humana é muito frágil em relação aos animais de grande porte. Um caçador ou vários deles não logra muita vantagem contra um perigoso tigre, leão ou elefante. É verdade que a produção de tecnologia de abate, como as flechas e lanças, deram uma condição superior ao homem. Contudo, ainda assim era muito arriscada essa empreitada. Por isso, acredita-se que quando caçavam estes grandes animais, os caçadores pré-históricos davam preferência àqueles mais velhos ou doentes que, por essa condição, ofereciam menor resistência. Desta forma, a caça para a subsistência não seria suficiente para causar a extinção em massa de várias espécies.  Outro ponto que devemos levar em conta é o fato do homem pré-histórico, por conta deste alto risco oferecido pelos grandes animais, dar preferência à caça dos animais de pequeno porte para conseguir sua fonte de proteínas.

Os arqueólogos acreditam que desde o evento da descoberta da produção de fios e redes que a principal fonte de alimentação carnívora foram os animais de pequeno porte. Devemos às mulheres o desenvolvimento destas técnicas de fiação, tecelagem e cestaria. Essa descoberta é chamada por alguns pesquisadores como "a revolução do barbante". O fato é que a produção de redes facilitou muito a captura de animais pequenos e peixes. Uma das técnicas utilizadas até os dias atuais é a de se colocar, num ponto da mata, várias armadilhas de redes presas em galhos de árvores. Feito isto, os caçadores dão a volta na mata indo para um ponto mais distante. Então, começam a caminhar em direção às redes, fazendo um grande barulho com gritos e batendo varas de bambu nas folhagens. Os pequenos animais ouvem a algazarra, se espantam, e fogem para o lado contrário, indo diretamente de encontro às redes. Os animais que ficam presos são facilmente capturados e abatidos.

Tenho na minha estante um livro de autoria de uma verdadeira autoridade acadêmica sobre este recorte histórico, que é o arqueólogo e historiador Pedro Paulo Funari. Na obra "Pré-história do Brasil", escrita juntamente com o professor Francisco Silva Noelli, os autores reservaram um item para discutir justamente sobre o caso da extinção destes animais da megafauna brasileira (páginas 56 e 57). Além da ação humana, os autores elencaram duas outras fortes possibilidades que podem ter contribuído para essa extinção em massa: as mudanças climáticas ocorridas no período e o surgimento de doenças epidêmicas.

Naquele período, por volta de 10 mil A.P. (antes do presente), o clima da Terra vinha sofrendo intensas mudanças. A era glacial chegava ao seu ápice e as condições se transformavam até chegar ao que temos atualmente. Muitas espécies que não possuíam plasticidade suficiente para se adequar àquelas mudanças acabaram sendo extintas.  Este fator, inclusive, serve de fundamento para a crítica de vários biólogos sobre a frase, atribuída a Herbert Spencer, de que a seleção natural corresponde à sobrevivência do "mais apto". Segunda a visão moderna, o melhor seria dizer "a sobrevivência do apto". O "mais apto" corresponderia a uma super especialização. E a espécie super especializada num determinado meio, sem uma margem de maleabilidade, não resistiria caso houvesse mudanças nas características ambientais. O homem, por exemplo, é apto a viver em várias paisagens naturais distintas; sendo que onde não conseguiu se adaptar biologicamente o fez através dos avanços culturais (ex: confecção de casacos para habitar em lugares gelados).

A outra possibilidade foi a disseminação de epidemias entre os animais da megafauna. Uma das teorias da chegada do homem no continente americano é através da ponde te gelo que se formou, durante a glaciação, no estreito de Bering. Esta travessia também pode ter sido realizada por outras espécies animais, que introduziram novos vírus e parasitas na fauna local  Sem imunidade para essas novas doenças, muitas espécies deixaram de existir. Há a possibilidade dos próprios homens terem trazido, consigo, animais para o novo continente a ser ocupado. Os autores mencionam que no século XIX, na África, várias espécies se extinguiram por conta de doenças trazidas pela introdução do gado europeu naquele ecossistema.

Para o professor Funari, a maior probabilidade é que todos esses fatores tenham contribuído para o desaparecimento dos animais de grande porte do continente americano.

A outra questão abordada no programa, sobre os índios terem causado grande destruição na cobertura vegetal por causa do uso de queimadas, também não guarda relação com a realidade pesquisada. Os índios eram predominantemente caçadores e coletores. A agricultura realizada por eles era muito reduzida. Não existia agricultura em larga escala. O que faziam eram pequenas clareiras onde plantavam uma pequena horta. Além disso, as tribos eram semi-nômades, se movimentavam pelo território, acompanhando a sazonalidade da caça e da coleta (hoje a pesquisa aponta que havia outras tribos com cultura sedentária, que usava o mesmo espaço por longos períodos). Estima-se que cada local desses, que ficava para trás, levava cerca de 20 a 40 anos para ser reocupado pela tribo. constituindo tempo suficiente para a mata se regenerar. 

Referência bibliográfica:

FUNARI, Pedro Paulo; NOELLI, Francisco Silva. Pré-história do Brasil. 4ª ed. São Paulo: Contexto, 2015.

Abaixo deixarei alguns vídeo do programa de televisão supra citado.

O Mito do Bom selvagem:
https://www.youtube.com/watch?v=UOwM4jlVsMQ&list=PLAr322Yg8UkDm3DB919nYT95CwvNZNYsE&index=5 

A destruição da mata:
https://www.youtube.com/watch?v=5QhRVNC3VNw&list=PLAr322Yg8UkDm3DB919nYT95CwvNZNYsE&index=6 

Índio não conhece ecologia:
https://www.youtube.com/watch?v=ZH3yTSuNtjw&list=PLAr322Yg8UkDm3DB919nYT95CwvNZNYsE&index=7 

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Um comentário:

  1. Ola amigo, contra os numeros não há argumentos, o fato é que a mega fauna nativa do Brasil sobreviveu por mais de 300 mil anos, e a partir da descoberta das Americas pelos povos do nordeste da Ásia a 12 mil anos, portanto exóticos a fauna americana, os grandes animais nativos das Américas foram extintos. Na época os índios caçavam armados com flechas em bandos de mais de 100 indivíduos, as preguiças gigantes não tinham defesas contra esse animal exótico e é facil imaginar o massacre que sofreu a população da mega fauna das nativa das Américas.
    Apartir do colapso dos herbívoros, seguiu o colapso dos carnivoros como dos tigres dente de sabre.
    Não foi uma seleção natural, e sim o que acontece quando se insere um predador exótico formidável, em um outro ecosistema.

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